A história do governance confunde-se com a história dos escândalos financeiros. São as crises que levam ao requestionamento do sistema para que venha a ser mais eficaz.

A regulação ainda tem uma palavra a dizer

Transacções entre partes relacionadas e financiamento a accionistas estão na agenda dos reguladores.

“As crises não são a negação do governance, são a afirmação da sua importância”, diz Paulo Câmara, ‘managing partner’ da Sérvulo. Um caminho que tem sido feito através de esforços regulatórios que, embora a história prove não serem suficientes, terão sempre espaço para serem aperfeiçoados. E um dos próximos passos deverá passar pelas transacções entre partes relacionadas. “É necessário tornar mais transparentes estas transacções”, nota o advogado. E explica: “Se há um negócio que a sociedade faz com o seu administrador, esse negócio tem de passar pela aprovação do conselho de administração, e antes por um parecer prévio do órgão de fiscalização. Devia existir um regime idêntico quando há um negócio com o accionista”. Um assunto que está na agenda europeia, através de uma proposta de directiva apresentada este ano, e que vai mais longe, ao considerar que as transacções de grande magnitude devam ser aprovadas em assembleia geral e não apenas pelo conselho de administração.
O investimento de 900 milhões de euros da Portugal Telecom em dívida da Rioforte é um exemplo paradigmático da importância do tema, que está também na agenda do regulador nacional. “Há um caminho a percorrer na regulamentação mais estrita das transacções com partes relacionadas, do financiamento a accionistas e na sanção da actuação de accionistas qualificados em benefício próprio”, diz Carlos Tavares. O presidente da CMVM destaca ainda a necessidade de aperfeiçoar o controlo da idoneidade dos gestores de empresas que fazem apelo público à poupança.

Investidores institucionais exigem melhores práticas

Têm interesse em garantir as melhores práticas de gestão mas têm também os meios financeiros e jurídicos para as alcançar.

A entrada de investidores institucionais, como fundos de pensões ou casas de investimento, no capital de empresas é uma realidade cada vez mais comum. Não sendo os accionistas de controlo, detêm posições qualificadas. Ou seja, investem numa perspectiva de valorização do activo e combinam o interesse de garantir as melhores práticas de gestão com os meios financeiros e jurídicos para as alcançar. “O peso e o papel dos investidores institucionais é cada vez mais forte. E acredito que o grande motor para que os temas do governance sejam cada vez mais relevantes são os investidores institucionais”, destaca Paulo Câmara.
A internacionalização das empresas portuguesas, seja através da entrada em novos mercados, seja pela entrada de investidores internacionais no seu capital, promete também mudanças importantes na efectivação do governance e na transparência das empresas. “Não podemos acomodar accionistas internacionais, não podemos pensar em internacionalizar as nossas empresas, não podemos ter empresas sustentáveis se as regras do jogo não forem claras e transparentes. Não vamos sobreviver”, diz Pedro Rocha de Matos, partner da Heidrick & Struggles.
Um factor que poderá ter influência em temas como o recrutamento profissional de administradores executivos e não executivos: “Porque para os accionistas internacionais isto é natural, é assim que se faz nas economias mais evoluídas”, conclui o consultor.

Não existe escrutínio externo sem informação credível

A única informação sobre o governo societário das empresas é hoje dadas pelas próprias.

O risco reputacional entrou definitivamente no radar das empresas nos últimos anos e será provavelmente a fonte de maior poder da sociedade enquanto força de pressão para que as empresas alinhem as suas práticas com os valores das comunidades onde se inserem. No entanto esse escrutínio não pode existir sem informação que só a independência de quem a produz pode tornar credível.
Em Portugal, a única informação sobre o governo societário das empresas é hoje dada pelas próprias, sem que exista uma entidade independente que a audite. E não tomando a parte como o todo, a verdade é que o último relatório de governo do BES afirmava princípios como: “A definição de políticas exigentes na gestão dos vários riscos inerentes à actividade bancária”, ou “o compromisso com a transparência na divulgação da informação a todos os ‘stakeholders'”. A pergunta é portanto legítima: que validade têm estes relatórios?
Ora, é precisamente a estes documentos que o único relatório de acolhimento de recomendações de governo societário vai beber a informação. Além disso, o relatório de governo societário elaborado pela Associação de Emitentes, em parceria com a Universidade Católica, não discrimina os resultados por empresa, eliminando assim o poderoso efeito da pressão social sobre as empresas que alcançam os piores resultados.
No entanto, Pedro Rocha de Matos destaca também o outro lado da moeda: “Hoje é disponibilizada muita informação sobre as organizações e portanto o primeiro passo é triturar essa informação. E eu tenho reservas de que toda a gente o fará, assim como tenho reservas que todas as pessoas tenham capacidade para ler um relatório e contas ou um relatório de governo societário, e que dediquem tempo a isso”. E adianta: “O pequeno accionista também tem de apostar em si próprio, na sua literacia financeira e económica. Quanto melhor preparado estiver, melhor conseguirá interpretar a informação que lhe é prestada”.

Os auditores externos e a sua falta de responsabilização

Limitam-se a opinar sobre a concordância dos relatórios financeiros com as regras de contabilidade.

Os sucessivos escândalos financeiros passam quase sempre pela existência de uma contabilidade fraudulenta, assinada sem reservas pelos auditores externos muitas vezes durante anos. É certo que ninguém espera que um polícia apanhe todos os criminosos. O que é estranho é que o mesmo polícia nunca apanhe nenhum.
O mercado de auditoria externa é dominado, globalmente, por quatro multinacionais: PwC, Deloitte, Ernst & Young e KPMG, que têm estado consecutivamente presentes em todos os escândalos financeiros da última década. Apesar disso, a sua responsabilização foi quase nula. Na verdade, dificilmente podem ser responsabilizados legalmente quando, formalmente apenas opinam sobre a concordância dos relatórios financeiros com as regras de contabilidade, e com base na informação que lhes foi fornecida, além de utilizarem expressões como “segurança moderada”. No entanto, Paulo Câmara garante que tratam-se de serviços extremamente regulados e aponta antes o caminho da supervisão: “Acho que a aposta deve passar por existir cada vez mais vigilância sobre os auditores. As estruturas de supervisão devem ser verdadeiramente eficazes na revisão dos trabalhos dos auditores, mas não é fácil”. E explica: “Quando há supervisão de auditores é preciso ter estruturas de supervisão suficientemente preparadas e com ‘know-how’ suficiente para fazer uma revisão ao mesmo nível. A capacitação da estrutura de supervisão é fundamental”.
Muitos têm procurado alternativas para o conflito de interesses existente entre auditores e auditados, mas a proposta de Joshua Ronen, professor na Universidade de Nova Iorque é, no mínimo interessante: seguros de relatórios financeiros. As empresas contratariam uma cobertura para proteger os accionistas de perdas que resultassem de falhas na contabilidade, e as seguradoras contratariam auditores para avaliarem as probabilidades de as mesmas acontecerem. Neste caso, os incentivos dos auditores estariam alinhados com os dos accionistas – certamente as seguradoras ofereceriam bónus generosos pelas descobertas de fraudes.

A sustentabilidade não interessa apenas aos accionistas

Trabalhadores, clientes e fornecedores são partes interessadas mas com pouco poder de influenciar decisões.

As empresas são um ecossistema do qual dependem uma multiplicidade de ‘stakeholders’. Ou dito de outra forma, a sustentabilidade das empresas não é do interesse apenas dos accionistas mas também de trabalhadores, clientes, fornecedores e, dependendo da sua dimensão e do seu sector de actividade, até da sociedade como um todo. Sendo assim, faria sentido ter alguns, ou todos, estes ‘stakeholders’ presentes nas estruturas decisórias da empresa? Na Alemanha, por exemplo, a lei obriga a que exista um representante dos trabalhadores à mesa do conselho de administração. “É uma especificidade cultural que é dificilmente replicável fora do contexto alemão. E mesmo na Alemanha é uma experiência muito criticada, em primeiro lugar por que já existiram muitos casos de ‘inside trading'”, diz Paulo Câmara. Concluindo que: “As empresas devem ser geridas por órgãos profissionais e depois existem as estruturas para gerir as relações com os trabalhadores. A confusão de papéis não é vantajosa para ninguém”. No entanto, Pedro Rocha Matos tem um entendimento diferente: “Faz todo o sentido”, diz. E garante que existem empresas portuguesas que já estão a adoptar comités de ‘stakeholders’. “As empresas hoje têm de operar num ambiente colaborativo. Conseguir operar servindo múltiplos interesses e tendo o mínimo de disrupções possíveis no seu funcionamento, como greves por exemplo. E isso só é alcançado se existirem palcos de relacionamento com múltiplos ‘stakeholders’, onde percebam quais são as expectativas de cada um destes grupos em relação à empresa”.

 

Fonte: Económico

 

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