A crise da dívida foi a crise da dívida pública. Mas em países como Portugal e Irlanda um dos problemas era (e continua a ser) o peso da dívida privada. O FMI está preocupado, o governo nem por isso.

Uma das razões pelas quais a crise da dívida pública iniciada em 2009/2010 recebeu esse nome foi porque o primeiro país a cair foi a Grécia, onde existia (e continua a existir) um problema grave de dívida pública, após vários anos de desorçamentação e défices públicos descontrolados. Na realidade, países como Irlanda, Portugal e, também, Espanha, cada um com as suas especificidades, registaram aumentos súbitos do endividamento público, perdendo o acesso aos mercados de obrigações do Tesouro em 2010 e 2011. Mas nesses países não foi a dívida pública o reduto principal onde se acumularam os desequilíbrios nos anos anteriores. Foi, sim, na dívida privada, que continua a ser um fardo pesado e um travão à retoma. O FMI voltou nos últimos dias a mostrar-se preocupado, mas o governo nem por isso.

 

Irlanda e Espanha tiveram – é consensual dizê-lo – uma bolha imobiliária acumulada nos primeiros anos de existência da zona euro. A Irlanda foi, depois da Grécia, o segundo país a pedir um resgate financeiro à troika e Espanha também recorreu aos fundos europeus, em 2012, para recapitalizar e reestruturar o setor financeiro. Essa reestruturação, que foi especialmente agressiva em Espanha, está a permitir atenuar este problema, algo também possibilitado pela aceleração do crescimento económico.

 Em Portugal, a dívida também cresceu graças às taxas de juro baixas que ficaram ao alcance das famílias portuguesas a partir do final dos anos 90, sobretudo para a compra de habitação própria, uma decisão apoiada amiúde por programas de estímulo público como o crédito bonificado. Por outro lado, as empresas apoiaram-se, em muitos casos, no endividamento bancário como alternativa à injeção de capital próprio ou a abertura do capital da empresa ao mercado aberto, o que teria permitido investir com um recurso menor ao crédito bancário.
“Mesmo que um determinado investimento possa ser, a prazo, bastante lucrativo, o facto de uma empresa ter uma menor capacidade de financiamento poderá afastá-la dessa oportunidade”.
Rui Bernardes Serra, economista-chefe do Montepio

Dívida pública só é problema se a dívida privada também for

Porque é que uma dívida privada elevada é um problema? Rui Bernardes Serra, economista-chefe do Montepio, explica que esse é um problema por duas razões: “pela quantidade e pelo preço“. Pela quantidade porque “os agentes económicos mais endividados têm menor capacidade para contrair novos empréstimos”. “Mesmo que um determinado investimento possa ser, a prazo, bastante lucrativo, o facto de uma empresa ter uma menor capacidade de financiamento poderá afastá-la dessa oportunidade”, acrescenta o especialista.

Por outro lado, no que diz respeito ao preço, “mais endividamento implica mais risco”, diz Rui Bernardes Serra. “E mais risco implica que os financiamentos sejam contratados com spreads maiores

[juros mais caros], algo que acaba também, no caso das empresas, por contribuir para uma menor competitividade nos mercados internacionais”, acrescenta o especialista. Mais recursos gastos em juros significam menor capacidade de baixar os preços dos produtos e, também, de investir na contratação e outros tipos de expansão operacional.

É imensa a pesquisa académica sobre este tema. Há cerca de dois anos, um estudo do Fundo Monetário Internacional (FMI) demonstrou que níveis elevados de dívida privada são mais prejudiciais para o crescimento da economia do que níveis elevados de dívida pública. Na análise dos economistas da instituição, uma dívida pública elevada só é um constrangimento para o crescimento quando o setor privado – famílias e empresas – tem, também, níveis elevados de dívida.

Ricardo Reis, economista e professor da Universidade de Columbia, diz que, em Portugal, “este é um problema muito difícil, que não me pareça esteja suficientemente resolvido”. “Quer os bancos quer as empresas podem carregar uma dívida do passado que impede novos investimentos. É difícil atrair novos acionistas porque eles percebem que antes de retirarem algum lucro têm de pagar as dívidas do passado” e, por outro lado, “é difícil conseguir crédito porque as instituições financeiras percebem que a empresa tem um incentivo em optar por investimentos muito arriscados de forma a conseguir pagar as dívidas anteriores, sabendo que já tem pouco a perder”.

O Observador falou a este respeito, também, com Douglas Renwick, responsável máximo pelos ratings da agência Fitch para a Europa Ocidental. “A dívida privada é uma componente essencial de todas as economias desenvolvidas, porque permite às empresas crescer e às pessoas antecipar consumos, gerindo os encargos ao longo da sua vida ativa. Mas as empresas e as famílias podem tornar-se demasiado endividadas, o que cria problemas para o resto da economia já que um fardo demasiado pesado de dívida privada desvia recursos para pagamento de juros que poderiam ser usados para investimento produtivo ou consumo familiar”.

“Um fardo demasiado pesado de dívida privada desvia recursos para pagamento de juros que poderiam ser usados para investimento produtivo ou consumo familiar”.
Douglas Renwick, responsável máximo pelos ratings da agência Fitch para a Europa Ocidental.

Stock fluxo. A dívida está a cair em Portugal

Segundo dados recentes do Banco de Portugal, mais detalhados e atualizados do que os do Eurostat, o endividamento total das empresas privadas baixou para 152,7% do Produto Interno Bruto (PIB), com as Pequenas e Médias Empresas (PME) carregadas por um endividamento correspondente a 85,5% do PIB. No final de 2013, a dívida das empresas ascendia a 162,1%, com 93% do PIB (de hoje) em dívida de PME, ilustrando a forma como o stock de endividamento privado tem descido desde o início do resgate, consequência do vencimento gradual de créditos antigos que, em muitos casos, não são substituídos por novas operações.

Já na dívida das famílias, o rácio face ao PIB caiu de 91,8% em dezembro de 2013 para 84,3% em março de 2015. Fala-se aqui do endividamento bruto das famílias, que deve ser lido à luz do facto de existir muito endividamento mas, também, existirem ativos – sobretudo casas. “Há dívida, mas também existem ativos”, sublinha Rui Bernardes Serra. Ainda assim, tem havido uma descida em ambas as rubricas (nas empresas e nas famílias), à medida que ambos vão amortizando os créditos antigos. Por outras palavras, a redução do fluxo está a diminuir o stock, gradualmente. Mas estará a dívida a crescer a um ritmo suficientemente veloz?

No último relatório de monitorização pós-programa, o FMI diz, a respeito de Portugal, que “a recuperação económica continua no bom caminho, mas o fardo [do stock] de dívida pública e privada deverá condicionar as perspetivas de crescimento a médio prazo, à medida que fatores favoráveis de ordem cíclica enfraquecem”. Entre estes fatores estarão as taxas de juro baixas (definidas pelo BCE), o euro mais barato (que ajuda as exportadoras) e o preço do petróleo mais baixo.

“O aumento do investimento no primeiro trimestre foi encorajador, mas isto será difícil de manter sem esforços maiores para reduzir o fardo da dívida das empresas e atenuar os impedimentos estruturais a que os recursos deixem de fluir para as empresas não viáveis e de baixa produtividade”, escreve o FMI. A instituição pede que as “autoridades nacionais tenham uma postura pró-ativa” e tenham “uma abordagem mais audaz no que diz respeito a resoluções de dívida empresarial [malparado] para acelerar a transformação estrutural na economia, procurando reestruturar a dívida de empresas viáveis e liquidar a dívida das empresas que já não são viáveis”.

“O aumento do investimento no primeiro trimestre foi encorajador, mas isto será difícil de manter sem esforços maiores para reduzir o fardo da dívida das empresas e atenuar os impedimentos estruturais a que os recursos deixem de fluir para as empresas não viáveis e de baixa produtividade”
Fundo Monetário Internacional, no último relatório de monitorização pós-programa.

Governo desvaloriza alerta do FMI

A este repto, o governo respondeu ao FMI desvalorizando esta questão. “As autoridades não veem os níveis excessivos de dívida empresarial privada como um grande impedimento ao crescimento global no curto prazo”, relata o FMI, acrescentando que o governo “prefere uma abordagem mais gradual nas liquidações de dívida, de modo a manter em níveis geríveis as potenciais necessidades adicionais de recapitalização na banca e a minimizar o impacto adverso de curto prazo no crescimento“.

O governo argumenta, segundo o FMI, que “a atual abordagem está a funcionar bastante bem, o que fica comprovado pelo amplo acesso ao crédito por parte das empresas produtivas, orientadas para a exportação“. Além disso, as autoridades nacionais mostraram-se “otimistas numa recuperação do valor dos ativos dados como garantias [aos empréstimos de que beneficiaram], à medida que os preços do imobiliário recuperam após um declínio excessivo nos últimos anos”. Resumindo: “as autoridades expressaram uma preocupação de que uma reestruturação [das dívidas privadas] mais acelerada pode colocar em perigo a estabilidade financeira e gerar liquidez parada nos bancos, sem que houvesse um impacto [positivo] na concessão de crédito”.