A meio caminho entre a Ásia do Leste, a Europa Central e a Europa de Leste, é a cidade mais rica da Alemanha e a maior plataforma logística do Norte da Europa. Marinha mercante onde já houve piratas, autómatos onde antes havia estivadores, armadores que querem a bandeira de Portugal nos seus navios.

 

O pai de Claus Kunt era pedreiro, mas Claus viu a onda a chegar. O de Jörg Molzahn, engenheiro. Jörg nasceu numa pequena cidade interior da Alemanha ocidental, perto de Dusseldorf, e só pensava em conhecer o mundo. “Hamburgo nunca seria Hamburgo sem o porto. Faz parte de quem somos”, diz Corinna Nienstedt, directora da Câmara de Comércio de Hamburgo.

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Claus vai-se reformar no fim do ano e voltará muitas vezes a Portugal; a primeira foi em 1976, queria ver o país da revolução e passou a fronteira em Ayamonte. “Estava farto dos espanhóis, falavam tanto.” Um dos melhores amigos portugueses conheceu-o logo aí, no Algarve, mas foi em Azinheira dos Barros que comprou casa. Este ano já foi de bicicleta de Hamburgo até lá, planeou 60 dias, com um amigo, chegara um dia antes do previsto. É o que faz quando não está a trabalhar nem a sambar, no Virada, o grupo que formou na cidade mais rica da Alemanha, a cidade que é um porto e que nasceu do porto para ser tudo o que é.

Claus começou nas agências de navegação, era “um faz-tudo e entrava às 4h da manhã”, viveu em Moçambique, Angola, já foi demasiadas vezes ao Sudão, este ano, mesmo antes da reforma, ainda vai à Papua Nova-Guiné. Quando trabalhou para armadores alemães no Rio de Janeiro conheceu uma brasileira. Não foi logo, mas ela lá veio ter a Hamburgo; em 1986 casaram, ela chama-se Betty, Joana é a filha e tem 27 anos. Jörg é capitão mas desistiu de andar no mar porque não havia relação que resistisse. Fundou a sua própria empresa, com um sócio da área financeira, e hoje passa uma semana a cada duas ou três em Lisboa para conseguir novos navios a viajarem inscritos no Registo da Madeira. Em Hamburgo, deixa a mulher e as duas filhas pequenas, uma entrou agora na primária. Um dia, Jörg vai deixar de ir tantas vezes a Lisboa.

Claus tem 63 anos e vai-se reformar no fim do ano; o capitão Jörg tem 37 e muitos anos de marinha mercante pela frente. Em Hamburgo, o seu escritório fica junto ao porto, a cinco minutos do Fischmarkt, que todos os domingos de manhã se enche de gente da cidade, como sempre, desde sempre. Entre o escritório e o mercado, há um casamento. “As pessoas casam junto ao porto.” Mais à frente. “Este é o primeiro bar da cidade, é um bar de piratas, nunca fechou.” Pelo caminho. “Todos estes edifícios são de empresas da marinha mercante.”

No regresso, pelo mesmo caminho, depois de uma conversa com Thomas Rehder, presidente da Carsten Rehder (e, desde 2011, da Associação de Armadores Europeus), quarta geração da empresa familiar como quase todas da área.

Se insistirmos ainda, conseguiremos lá voltar para o fotografar com o filho? O filho começou noutra empresa, por baixo, já é a quinta geração sem o ser. “Os meus compatriotas são homens rígidos. No fim ele já estava muito descontraído”, responde Jörg.

As vistas da cidade

2Claus vive numa casa de uma cooperativa, paga mais 100 euros de renda do que pagava quando lá chegou, há quase 30 anos. A casa fica na rua que não é uma rua, é uma praça mas tem nome de rua: Fischmarkt Strasse. Da varanda da cozinha vê o porto e o rio. Do seu escritório, no terminal que durante anos foi o mais moderno do mundo e ninguém sabe dizer se já não é, ouve o tempo todo as pás da maior turbina eólica do Norte da Europa; são duas, uma ao lado da outra, mas o barulho é da maior. Claus tem vista da cozinha para o rio e trabalha no terminal dos carrinhos robotizados, que retiram os contentores da pilha e os transportam até aos camiões ou aos guindastes (alguns ainda são operados por gente, é gente que está quase a ter de mudar de profissão, não de área, só de ofício, na HHLA – Hamburger Hafen und Logistik AG, empresa de transporte e logística, ninguém é despedido; Claus sabe disso, é da Comissão de Trabalhadores); dos guindastes, os contentores vão para os comboios que vêm a um ritmo certo. Os comboios são 700 metros de contentores coloridos, se passarem dez minutos e não vier mais um, é porque aconteceu algo grave no porto de Hamburgo.

Claus vê o rio da cozinha mas o seu lugar favorito na cidade é o Skyline Bar 20up, o bar de um hotel, no 20º andar, a cidade que é toda um porto iluminada, a funcionar 24 sobre 24 horas. Um dry Martini a 20 andares do chão, numa zona de Hamburgo especialmente alta, num bar com paredes de vidro de cinco metros de altura a toda a volta não é a melhor das ideias, a não ser que sejamos o Claus, que tem 63 anos e vai trabalhar de bicicleta, uma parte do caminho é de barco, ele e a bicicleta, o resto são uns bons 15km a pedalar, para lá e para cá.

Este ano Claus já só volta a Portugal em Novembro, antes tem vários hectares onde plantar árvores de frutas na casa da sogra (no Alentejo faz azeite), em Niterói. Foi onde nasceu Betty, que estudou no Brasil e quando chegou a Hamburgo, com visto de estudante, decidiu tirar Pedagogia, Estudos Africanos, tem um programa de rádio numa ONG que trabalha com crianças desfavorecidas, alemãs quase todas, calha lá aparecerem filhos de imigrantes também, um ou outro filho de refugiado deve lá ir parar não tarda.

A colecção do Sr. Tamm

Em Hamburgo vivem 1,8 milhões de pessoas, cinco milhões na área metropolitana. O porto antigo, uma parte dele, que não inclui o mais antigo armazém, mas inclui Speicherstadt , Chilehaus e parte do bairro de Kontorhaus, acaba de ser classificado Património da Humanidade pela UNESCO. De fora ficou o tal armazém, onde hoje funciona o Museu Marítimo Internacional da cidade. Uma colecção que um miúdo começou aos seis anos. “Estava com febre e a mãe ofereceu-lhe este barquinho branco. Ele diz que foi assim que começaram os seus problemas, eu sei que ele gosta dos seus problemas”, diz Gerrit Menzel, o historiador do museu, um dos guardiões da colecção Peter Tamm, o menino de seis anos que agora é um senhor curvado que encontrámos por acaso na loja do museu.

A maior colecção privada de artefactos marítimos chegou a esta casa em 2008 e agora está exposta em nove “plataformas marítimas”, em 2003 já era propriedade de uma fundação não lucrativa. É preciosa. Por tudo, pelo amor do senhor Tamm, pelo cuidado de Gerrit, pelos senhores que ocupam uma sala onde reparam modelos e com os quais se pode conversar ou então só a ver, trabalho de paixão, mãos firmes e paciência infinita. Está lá o Vasco da Gama e o Fernão Magalhães, mais o modelo do porto de Bremen e o de Hamburgo que ainda vai demorar anos a acabar (o senhor que o está a fazer já tem mais de 70). Também há um porta-contentores em Lego, com bonecos que vão aparecendo e desaparecendo, o fantasma, o Darth Vader … Trabalhar aqui só pode ser uma alegria e um prazer.

O senhor Tamm recomenda os livros da loja, são todos em alemão mas têm fotografias da história do porto, da história de Hamburgo e da sua história. Gerrit recomenda tudo.

O primeiro cruzeiro

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Os números de visitas deste museu contam um bocadinho do que tem sido a evolução de Hamburgo enquanto destino turístico. “Eu costumava ir a Munique e via lá aquelas turistas todos… E só pensava, como é que é possível? Hamburgo tem tanto mais, e não temos turismo.” Agora, Hamburgo já tem turismo que não pára de crescer. Os cruzeiros são uma parte dessa história. E é numa visita ao museu que se descobre que foi Albert Ballin (1857-1918), magnata da marinha de Hamburgo, o inventor do conceito. Primeiro, pegou no Augusta Victoria e decidiu enchê-lo de ricos e largá-los 53 dias no Mediterrâneo; nove anos depois, nascia o Princess Victoria, “o primeiro navio construído com o objectivo único de funcionar como cruzeiro”.

Hoje, 60% dos visitantes do museu da colecção Tamm são estrangeiros; 30 a 40% vêm de fora da Europa, principalmente da Ásia. Em 2013, Hamburgo foi o primeiro porto alemão a alcançar a marca dos 500 mil passageiros numa só época, com 178 cruzeiros a passarem por cá. Desde Junho deste ano, novas instalações permitem gerir 6000 a 8000 passageiros em dez horas de chegadas e partidas. O Queen Elizabeth e o Queen Mary II vivem praticamente em Hamburgo. Os cruzeiros geram impacto económico e energia – alimentam-se de geradores, que eles próprios alimentam, o que sobra fica na cidade.

O tijolo vermelho

4Hamburgo são canais e mais canais, pontes e sinais que indicam as marés e avisam para a possibilidade de subidas repentinas a lembrar as grandes inundações. Hamburgo são os grandes incêndios que arrasaram tudo em diferentes séculos e é o que sobrou dos bombardeamentos da Segunda Grande Guerra. São pessoas a pedalar bicicletas nas pontes dos canais que desembocam no lago pequeno e depois no lago grande.

Hamburgo é um gigantesco porto. É o rio Elba, a 100 quilómetros do mar do Norte, e todos os terminais e gruas e turbinas e navios e contentores que se vêem de todo o lado. Hamburgo é a zona do princípio do século XX que a UNESCO considerou ter “um extraordinário valor universal”, um complexo de armazéns marítimos e escritórios, que “ilustram fases significativas da história da humanidade”. Armazéns que vão dar a redes de estradas, canais e pontes erguidas de 1885 a 1927, mais o conjunto de instalações ligadas ao porto construídas em tijolo vermelho entre os anos 1920 e 1940.

Speicherstadt é maior complexo histórico de armazéns do mundo. Ocupa 26 hectares e inclui 17 conjuntos de edifícios de expressionismo gótico alemão, o tijolo vermelho, com mais de 300 mil m2 de área de armazenamento. Por ali passaram café, chá, cacau, especiarias, tabaco, quando a vida do mar e da estiva era realmente dura e os homens carregavam as sacas. Nas últimas décadas, começaram a chegar os tapetes orientais. Há mais atracções a fazer furor entre os turistas, como o Miniatur Wunderland, o maior caminho-de-ferro em miniatura do mundo.

Kontorhaus entrou na história da arquitectura por ser o primeiro bairro comercial da Europa continental. O Chilehaus, a lembrar a proa de um navio, é considerado o mais importante legado do expressionismo na arquitectura. A construção em tijolo expandiu-se ao resto da Europa do Norte e foi a base dos primeiros arranha-céus da Alemanha.

Namorar no lago

Hamburgo são pessoas que aproveitam qualquer raio de sol para beber cerveja a namorar enquanto alimentam os patos no lago ou vêem passar os cisnes. São bancas e bancas de cerveja, cuba libre, salsichas, tartes, batatas fritas, cadeados do amor em cores fosforescentes que fazem arder os olhos, malas e T-shirts que dizem “Hamburgo”, “Porto”, “St. Pauli”, um dos bairros da cidade, parte do Mitte, lugar de igreja e do Red Light District, o Reeperbahn, antes eram os marinheiros, hoje são os turistas – os marinheiros já nem saem dos navios, quanto mais do porto.

Hamburgo é um gigantesco porto, com terminais, gruas, turbinas eólicas, navios e contentores por todo o lado

Hamburgo é um gigantesco porto, com terminais, gruas, turbinas eólicas, navios e contentores por todo o lado

Hamburgo são pessoas que aproveitam qualquer raio de sol para beber cerveja a namorar enquanto alimentam os patos no lago ou vêem passar os cisnes. São bancas e bancas de cerveja, cuba libre, salsichas, tartes, batatas fritas, cadeados do amor em cores fosforescentes que fazem arder os olhos, malas e T-shirts que dizem “Hamburgo”, “Porto”, “St. Pauli”, um dos bairros da cidade, parte do Mitte, lugar de igreja e do Red Light District, o Reeperbahn, antes eram os marinheiros, hoje são os turistas – os marinheiros já nem saem dos navios, quanto mais do porto.

Pelo Reeperbahn passaram The Beatles, em 1962, quando ainda não eram os “fab four” e podiam dar concertos de borla em bordéis com tampos de sanita na cabeça. Os bordéis ficaram, os episódios também, verdadeiros ou inventados, as prostitutas, as montras, as esquinas, as leis (é uma das duas únicas zonas da Alemanha onde o porte de arma é proibido), os edifícios históricos ainda por lá andam, uns mais bem tratados do que outros. Chove torrencialmente e é uma festa, ninguém está sóbrio e há quem tente apanhar boleia de chapéus-de-chuva acabados de comprar e já com uma vareta partida, vale a pena, tem as cores do arco-íris. É fácil fazer amigos. Há a canção de Tom Waits, Reeperbahn, e tantas outras. Há os filmes. Há a vida, que não pára, nem que a chuva se torne neve e o frio gele os ossos.

Estiva e restaurantes

5Já não há estivadores em Hamburgo. Nem piratas. Há cruzeiros e marinha mercante e eólicas, guindastes robotizados e há tudo o que o porto gerou. Uma grande percentagem do que chega pelo mar fica logo aqui. O resto segue para a Rússia (agora não, por causa das sanções impostas depois da Ucrânia), para os países Bálticos, para a Escandinávia. Vem quase tudo da Ásia. Sai daqui de barco, de comboio, de camião ainda, mas cada vez menos. Hamburgo quer ser uma “cidade verde” mas ainda falta muito, há uma fábrica de carvão quase a abrir, estava planeada há décadas.

Os portugueses vieram para a estiva, hoje têm restaurantes a que chamam “Sagres” e “Nau” com ementas em alemão e preços para turistas. Os portugueses que vieram, da Madeira, de Aveiro, de Ílhavo, da Figueira da Foz, Nazaré, de Viana do Castelo, não comem aqui, comem fora da cidade grande, nos restaurantes dos clubes, o Benfica, o Sporting, o Porto. Casam quase todos com gente de Portugal, como o Nuno Miguel, que trabalha no “Sagres” e casou com uma rapariga que conhece desde a escola primária, na Madeira. O David não, vive com uma alemã há dois anos, foi pai o ano passado. É de Aveiro mas vai ficar por cá, trabalha numa casa de bifes numa das extremidades do Reeperbahn. Nasceu aqui. O pai encontrou trabalho na construção, a mãe “teve sorte” e filetou peixe durante 20 anos no Fischmarkt.

Agora, há armadores alemães que querem navegar com a bandeira portuguesa. “O que importa é ter uma bandeira da União Europeia e a portuguesa exibe um orgulho especial”, diz Jörg. Também querem contratar cadetes portugueses para engrossar as suas tripulações de experiência e história mas não é fácil. “Vieram dois, acabaram de chegar, queríamos mais”, diz Thomas Rehder, que já tem navios com bandeira portuguesa.

Olhos azuis a brilhar

A empresa que Jörg (ou capitão Molzahn) fundou com Albrecht Gundermann chama-se Euromar e tem como objectivo levar armadores a inscreverem os seus navios no Registo Internacional de Navios da Madeira (MAR), uma concessão gerida pela Sociedade de Desenvolvimento da Madeira. Tem corrido muito bem. Há dias, juntou-se mais um porta-contentores à família, “mais uma pequena senhora na frota”, chama-se Malleco.

Em Hamburgo vivem 1,8 milhões de pessoas, cinco milhões na área metropolitana. E o turismo não pára de crescer

Em Hamburgo vivem 1,8 milhões de pessoas, cinco milhões na área metropolitana. E o turismo não pára de crescer

“Portugal pode ser a ponte de confiança entre o resto do mundo e o mundo que fala português”, diz Jörg, olhos azuis a brilhar muito enquanto espera pelo seu bife de atum num dos restaurantes do Fischmarkt. Jörg começou nos cargueiros para “ver o mundo” e estar na vida desta forma, “muito internacional”. Foi capitão de navios que navegavam na África Ocidental e gostou “muito disso”. Um dia, o administrador adoeceu e teve de pôr baixa, ele era o único alemão com menos de 50 anos numa tripulação de filipinos. Era para ter sido uma semana mas acabou por ficar três meses no escritório. Hoje, trabalha em dois escritórios, um em Lisboa, outro em Hamburgo.

“Descobrimos um nicho de mercado. Queríamos uma empresa nossa e sabíamos que o futuro está na Europa, numa bandeira europeia. Oferecemos a ideia à nossa antiga empregadora, ela recusou. Percebemos que ou o fazíamos sozinhos ou nunca iria acontecer”, explica Jörg. “Lembras-te da campanha presidencial nos Estados Unidos, quando Mitt Romney disse que ‘a Europa não trabalha nem sequer na Europa’? Essa frase marcou muito a indústria aqui.”

Aterrar em Lisboa

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Quando Jörg descobre que o inventor de cruzeiros nasceu em Hamburgo convence-nos a ficar à espera de um amigo, comandante de cruzeiros, sempre a chegar e a partir, como ele, antes. “Vá, agora vais ser fotografado na tua farda”, brinca. “Queres a azul ou a branca?”, responde o comandante. “Para já, a vida é boa. A Papua é um sítio muito especial. A ilha de Soqotorá, no Iémen, nunca fui, gostava muito. Timor é assim tão bonito?” Os olhos de Jörg brilham e ficam maiores, mas a vida dele mudou, “a liberdade” do mar alto ficou para trás e não faz mal. Está tudo bem. Basta-lhe ouvir as histórias do amigo, enquanto atende mais um telefonema de Portugal.

“Temos uma equipa jovem, muito entusiasta. Podia ser mais fácil, a escola náutica, por exemplo, podíamos dar emprego a muitos mais jovens, mas eles têm lá simuladores que nem usam nas aulas… Aterrar em Lisboa é muito especial”, diz Jörg, que voa sempre aos domingos e regressa à terça-feira e que, apesar de adorar Lisboa, fica na linha de Cascais. “O José é um marinheiro, foi um dos primeiros a mandar-nos um currículo, é um jovem óptimo, muito ambicioso”, conta. “No primeiro ano, conseguimos registar 100 navios e então, mesmo os mais cépticos começaram a acreditar. Há lucro para a Madeira, há lucro para o continente.”

Uma família fechada

A marinha mercante em Hamburgo é como uma família: 3200 armadores e mesmo quem já entrou na área pode demorar a ter acesso, a ser considerado parte da família. Ninguém quer ter navios só com bandeira dos EUA, China, países árabes, Panamá… Uma coisa é comprar os navios construídos na Ásia, a qualidade é idêntica e o preço incomparável; diferente é navegar sem uma bandeira europeia. Pode fazer-se, mas a partir de certo ponto perde-se competitividade. Demora dois anos a mudar de bandeira, Bruxelas é proteccionista e os estados membros também. Mas é possível convencê-los a mudar, desde que seja para outra bandeira europeia.

“Hamburgo sofreu com a crise financeira, mas a uma escala industrial aguentámo-nos. Ficámos mais eficientes, também”, diz Thomas Rehder, da Carsten Rehder. Foram sete anos de mercados a cair, com os bancos sem darem crédito. Hoje, “40% da carga que cá chega vem para cá ou para a vizinhança, 40% do que é carregado aqui vem daqui; 30% vai de comboio, somos o maior hub ferroviário de carga da Europa; 30% vai para o Báltico”. Sim, “por contentor” é muito mais barato viajar de navio do que de camião. A frota alemã “está em declínio”, mas os alemães estão a “reajustar-se”. Hoje, “os navios da União Europeia passam menos de 8% do tempo em águas europeias”.

O que a Alemanha tem, como a Holanda, é que os barcos foram sempre o modo de transporte local, e isso é um património que nunca se perde e sobre o qual é sempre possível construir.

“Portugal pode oferecer vantagens competitivas, tem gente com experiência, uma cultura náutica que chegou aos jovens, aos cadetes, aos engenheiros. Esta gente pode ascender a posições qualificadas a bordo e os salários são altos, chegam a ultrapassar os 8000 euros”, sublinha o armador, que chegou a trabalhar na reparação de navios em Marselha e viu “como os sindicados destruíram o porto e a indústria” da cidade do Sul da França.

O bombeiro de serviço

6Claus não podia ser mais diferente de Thomas Rehder. Já liderou piquetes de greve, está ou esteve na “lista negra” de todas as empresas. Mas encontrou o seu papel: há muitos anos que é o “bombeiro de serviço” da HHLA. Cabe-lhe espalhar pelo mundo o software usado no terminal onde trabalha. Onde quer que já esteja a funcionar, foi ele que o levou. “Muitas viagens, muito mundo. Já não preciso de ir ao fim do mundo para ver o fim do mundo.”

Foi no início dos anos 1970 que tudo começou. “A onda veio e eu vi a onda a chegar. Percebi, é o meu futuro.” O tal terminal robotizado onde Claus trabalha começou a funcionar assim há 15 anos. “Agora, os grandes navios atracam, o condutor nem sai do camião. O máximo são sete contentores em altura, oito se estiverem vazios. Com este sistema flexível, sem precisar sequer de um guindaste, poupa-se muito tempo; é maravilhoso, os autómatos avisam com 30 segundos de antecedência, se houver algum problema, não chegam a avariar. Nos últimos cinco anos, o sistema parou duas vezes. Hoje, vêm 18 mil contentores a bordo. Este ano, desembarcámos 8000 de uma só vez, foi um recorde.”

A HHLA é a empresa 15ª no ranking mundial, Claus conhece bem muitas empresas, trabalhou nas maiores, da Mersk à MC, passou um ano na Faculdade de Letras em Lisboa, a estudar Língua e Cultura Portuguesas, esteve um ano na seguradora Allianz, conseguiu uma bolsa para trabalhar no Brasil (“concorremos 200, só fui eu”), viajou para “todos os portos brasileiros, vi como funcionava o fluxo e comecei a melhorar o sistema”. Em 1992, passou “alguns meses em Portugal a trabalhar na Portline, na altura era estatal, antes de ser comprada por Stanley Ho

[o milionário macaense acaba de a vender à Via Marítima, do grupo madeirense Sousa], estive a pôr a funcionar o sistema de controlo, mas o mesmo software continuou a ser usado durante dez anos, é muito tempo…”

Sorrir para a fotografia

Claus foi um dos primeiros “faz-tudo”, tinha estudado “numa escola comercial especial” e passou três anos como agente marítimo. “Em 1982, havia uns 500 trabalhadores portugueses no porto e nos estaleiros.” Passou um ano, “demasiado tempo no Lobito”, em Angola, gostou “da Beira, em Moçambique, a trabalhar com cargas perigosas”, como gosta dos portugueses e dos brasileiros. Entretanto, tornou-se no tal “bombeiro de serviço”: Odessa, na Ucrânia, Bulgária, África e mais África, Ásia e mais Ásia. E agora Claus quer é passar mais tempo no Alentejo e em Niterói, ajudar a filha que chega com o pneu da bicicleta em baixo e de repente está ela e o pai de óleo até ao nariz e a bicicleta toda em peças e é preciso voltar a montar tudo.

Joana e Betty sorriem para a fotografia, Claus sorri com a cara toda a mostrar-nos o porto, as eólicas, a falar da igreja vermelha e do cemitério onde as pessoas ainda vão deixar flores e isso é tudo o que resta de uma aldeia arrasada para o porto crescer, a contar como é voluntário na residência dos marinheiros; afinal, há gente que fica sem trabalho, gente que chega e nunca mais de cá sai. Claus não sorri para a fotografia, é alemão, “um homem rígido”, pelo menos quando a máquina está apontada para ele.

A porta para o mar do Norte não pára de crescer

Ulrich Getsch está cansado mas não falta ao encontro e inventa quatro horas para mostrar a cidade. Passou a noite ocupado com os preparativos para a chegada, 5 de Setembro à noite, de 500 refugiados a Cuxhaven, cidade de que é burgomestre (presidente da câmara). A 120 km de Hamburgo, Cuxhaven é o mar do Norte a entrar pela Alemanha, e Getsch, filho de pai romeno, formado em Finanças, ex-professor, ex-executivo da Volkswagen, decidiu candidatar-se como independente.

O burgomestre já estava cansado antes de dia 5, mais coisa menos coisa, anda sempre cansado. Quatro anos e três a quatro mil emails depois, conseguiu trazer para Cuxhaven a Siemens, um investimento a curto, médio e longo prazo que trará emprego directo, mais os fornecedores da Siemens, e fará da pequena cidade de 50 mil habitantes um pólo de construção de eólicas.

Os portugueses começaram a chegar nos anos 1960, para a pesca e para as conserveiras. Há uma rua, património cultural, com as casas onde viviam. Pequenas fábricas no rés-do-chão, alojamento no primeiro andar. Três bandeiras ostentam o orgulho da terra e de quem ficou. Ficaram muitos, são empregados e empregadores, como Gaspar, 45 anos, que já cá nasceu, fundou uma empresa, abriu uma fábrica. Horst Hussfeld, 65 anos, tem uma empresa de pesca: nas fábricas 60% dos trabalhadores são portugueses; nas tripulações, 80%. “Tenho pessoas de 21 nacionalidades.”

Luísa veio para a restauração, vai no terceiro restaurante, cozinha peixe à alemã, camarão do mar do Norte (frio e minúsculo) e uma mista de quatro peixes são os pratos mais pedidos. Carlos, “gafanhão orgulhoso”, achou que vinha para a construção. “Estava a fazer uma casa e o patrão disse-me, ‘se acabares até dia tal, levo-te para a Alemanha’.” Acabou. Quando chegou puseram-no a filetar peixe numa fábrica. “Trabalho duro?” Carlos nem sabia por onde começar. “Dura é a língua.” Dura é Cuxhaven, frio, vento e chuva, neve já houve mais. A chuva ensopa e o vento corta e gela dos ossos às entranhas.

Getsch tem vários motivos de orgulho mas começa por uma visita ao museu do Parque Nacional Wattenmeer, um edifício em madeira construído por um arquitecto suíço e que custou 200 mil euros que o autarca arrecadou numa palestra em Hamburgo. O museu mostra a biodiversidade, a fauna e a flora única destas marés baixas que temos à nossa frente e que atravessam três países, Dinamarca, Alemanha e Holanda. Chove, mas lá ao fundo há pessoas em carrinhos puxados a cavalo. Também há as espécies que estão a ser reintroduzidas, o bisonte e o lobo.

Cuxhaven é uma estância de turismo. Acabou a época, foram embora as famílias, chegaram os reformados. Há muita gente a comprar casa aqui quando deixa de trabalhar. E sim, há pessoas na praia, nos bancos que são cestinhos e tem um forro às riscas, e os hotéis estão cheios. Cuxhaven fica a 1h50 de comboio de Hamburgo, menos se viajarmos no carro do burgomestre, dá 280 e ele gosta de o conduzir de noite, nas auto-estradas com maior limite de velocidade.

Hoje é sábado, choveu torrencialmente durante a manhã, mas logo depois de almoço o sol brilha e mesmo se não brilhasse, seria dia de bootfest, o festival dos patinhos de borracha que descem o canal na praça do centro da cidade. Há farturas que vieram de roulotte da Costa Nova (Aveiro), um velhote que faz nós de marinheiro, cerveja, salsichas, peixe, tartes, a banca do partido Die Linke, a da CDU, com a fotografia de Angela Merkel, quase em frente à dos parceiros de coligação do SPD.

Saudades de Portugal

Rosa chegou muito pequena; primeiro veio o pai, a seguir a mãe com o irmão mais velho (são seis), três meses depois foi buscar os outros, “não aguentou as saudades”. Rosa ficou viúva em 2005 e tem dois filhos que já deviam estar fora de casa. Laura, 34 anos, está de férias no Algarve, trabalhou como assistente de farmácia, ganhava mal, tirou Línguas e Literaturas – Espanhol e Francês, está a tentar encontrar trabalho. Nasceu aqui mas é portuguesa. “Mãe, Lisboa é um mundo.”

O filho de Rosa trabalha numa empresa que constrói “as ventoinhas”, as pás das eólicas; Rosa numa fábrica de peixe. O filho, 28 anos, tem uma namorada alemã e vai ficar em Cuxhaven. Laura é que não. “Não quero um alemão, mãe, passar a vida a traduzir a conversa à mesa, nem pensar.” Rosa sonha com Portugal, com o sol, com a comida. Mas o filho ainda não saiu de casa e a filha agora precisa de ajuda.

Hoje, Rosa tem um companheiro, Alfredo Stoffel, que viveu 17 anos em Portugal e 38 na Alemanha. “Se tiver de dizer de onde sou…”.

Alfredo é membro activo da comunidade portuguesa, muito activo, domingo há eleições para o Conselho das Comunidades e ele vai ser reeleito. Em 2006, negociou um acordo de geminação entre Cuxhaven e Ílhavo. Cuxhaven tem acordos destes com muitas cidades, em Espanha, na Islândia. De Espanha já veio muita coisa e muita gente, de Ílhavo nada. “É uma pena. Há potencial, faltam aqui pessoas qualificadas, os espanhóis vieram”, diz Ulrich Getsch, que há dois anos visitou Ílhavo “e não podia ter sido mais bem recebido”.

A bóia e os refugiados

Há a pesca, as indústrias transformadoras, a fábrica de farinha de peixe, usada em produtos de alimentação mas aqui também transformada em óleo para cosméticos, há as centenas de milhares de carros que aqui chegam e a partir daqui são exportados, há a plataforma petrolífera, que se avista da praia, mais as eólicas na ilha em frente (a ilha é Hamburgo, como já foi Cuxhaven).

O símbolo de Cuxhaven é uma torre com uma bóia no topo. Fica no lugar em que acaba o mar do Norte e começa o rio Elba, o caminho que os porta-contentores percorrem até Hamburgo. O desemprego está abaixo dos 6% mas os jovens saem para as universidades (aqui estudam até ao 13º ano, o pré-universitário) e alguns não regressam. Não há pobreza escandalosa nem degradação evidente. O antigo bairro operário, que em pequena Rosa sabia ter de evitar, até já tem árvores e espaços entre as casas de dois andares.

Cuxhaven não vai parar de crescer, ainda que Ulrich Getsch tema o impacto dos refugiados (aos 500 iam seguir-se, dois dias depois, mais 900) no turismo. Talvez ainda acabem a trabalhar na fábrica de farinha de peixe ou abram restaurantes árabes ao lado do da Luísa. Vai correr tudo bem.

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Corinna Nienstedt, da Câmara de Comércio de Hamburgo, também é alemã mas desfaz-se a sorrir para a fotografia. “O porto não é só o porto, é a nossa cultura, está dentro de nós. Hamburgo não existiria sem o porto, nós não seríamos quem somos.”. Corinna não seria quem é, Claus muito menos, Jörg nem sabemos onde andaria, David não teria nascido cá, Thomas Rehder não seria a quarta geração da sua empresa. Hamburgo não seria a cidade mais rica da Alemanha e nós não teríamos nunca avistado a cidade que é um porto do Skyline Bar 20up entre vertigens e um dry Martini.

Fonte: Público

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