Uma revolução. É o que os proponentes de um referendo querem fazer. Mesmo que não consigam acabar com a banca como a conhecemos, querem que as pessoas saibam que o dinheiro é criado “a partir do ar”.

Quando o seu banco lhe aprova um crédito para a compra de casa, sabe de onde vem o dinheiro que é creditado na sua conta para que possa pagar a casa ao antigo proprietário? A julgar por inquéritos feitos um pouco por toda a Europa, é provável que acredite que esse dinheiro que o banco faz aparecer na sua conta é capital do próprio banco ou corresponde aos depósitos que outros aforradores ali fizeram anteriormente. Ou, talvez, o leitor acredite que se trata de dinheiro que o seu banco foi buscar ao banco central – neste caso, o BCE – para lhe emprestar a si. Na realidade, não é bem assim que as coisas funcionam. Esse “dinheiro de crédito” é criado pelo próprio banco comercial, como que a partir do ar, e sobre aquilo que aparece na sua conta o banco apenas tem de manter uma pequena percentagem como reserva (normalmente depositada no banco central).

É graças a este sistema, a que se chama sistema de reservas fracionárias, que a massa monetária cresce e que acontece a maioria das operações de financiamento das economias. Em termos simples, os bancos criam novos depósitos cada vez que fazem um crédito. Num mundo em que o padrão-ouro não é mais do que uma memória distante, o sistema que existe, e que predomina, há muito tempo que causa arrepios a muita gente. E um devoto grupo de voluntários suíços conseguiu no final do ano passado as 110 mil assinaturas necessárias para que haja na Suíça – um país bem habituado a referendos – uma consulta popular que irá perguntar aos cidadãos se acham que os bancos privados devem ser impedidos de multiplicar as suas reservas e criar dinheiro novo, isto é, dívida nova.

O referendo poderá acontecer dentro de ano e meio – perto do outono de 2017 – e, em caso de vitória do Sim, seria uma espécie de revolução capaz de abalar o sistema financeiro mundial. O Observador conversou com os impulsionadores da Iniciativa Vollgeld — é assim que se chama –, com um membro de um movimento irmão em Portugal e com dois Professores de Finanças e Economia que dizem que estamos perante uma “ideia tonta”.

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Os suíços vão ter na ponta de uma esferográfica uma decisão que pode abalar o sistema monetário global.

Vollgeld. A iniciativa pelo dinheiro inteiro e pela boa moeda

Renato Rodrigues, um engenheiro do Ambiente hoje com 31 anos, viu, certo dia, o conhecido documentário Zeitgeist e não quis acreditar. “Pareceu-me tão extraordinário que não acreditei. Bateu-me fundo“, diz, em conversa ao telefone com o Observador. Hoje, é um dos impulsionadores do movimento Boa Moeda (já lá vamos). Como a maioria dos portugueses – “incluindo pessoas com poder decisório, acredito eu” – Renato acreditava que a criação de dinheiro (ou melhor, de crédito) era responsabilidade exclusiva dos bancos centrais e que os bancos privados não eram mais do que intermediários que cobravam juros. A verdade é que, no sistema de reservas fracionárias, o banco central consegue, através da sua política monetária, influenciar o processo de criação de dinheiro mas não o controla diretamente.

E qual é o problema com o sistema em que vivemos, aos olhos dos críticos, sobretudo numa altura em que a maioria do dinheiro é eletrónico e não físico (notas e moedas)?

“O dinheiro soberano é o dinheiro que um banco central coloca em circulação. Neste momento, isto consiste apenas nas moedas e notas em circulação. Este dinheiro legal corresponde a apenas 10% do dinheiro em circulação na Suíça. 90% é dinheiro eletrónico ou dinheiro contabilístico que é criado pelos bancos com o clique de um botão. A maioria das pessoas acredita que o dinheiro que tem nas contas bancárias é dinheiro real — francos suíços, libras ou euros reais –. Isso não é verdade! O dinheiro que está no banco não é mais do que uma responsabilidade do banco para com o aforrador. É uma promessa que o banco faz de que consegue entregar o dinheiro ao aforrador. Não tem, em si, valor de direito legal sobre a moeda nacional (legal tender)”.

Esta explicação é dos impulsionadores da iniciativa Vollgeld, que significa dinheiro inteiro. Dinheiro inteiro em oposição ao dinheiro de crédito, criado pelos bancos comerciais, que apenas têm de guardar uma pequena reserva em relação ao montante emprestado. Renato Rodrigues diz que, hoje, não gosta de ouvir a palavra emprestar, porque não lhe parece ser o melhor vocábulo para descrever o que realmente acontece.

“Não existe dinheiro eletrónico sem crédito”

Ao Observador, um dos economistas ligados ao movimento, Martin Alder, explica que “qualquer dinheiro eletrónico nas nossas contas bancárias é, por definição, fundado em crédito. Contrariamente ao que acontece com o dinheiro físico, não existe dinheiro eletrónico sem crédito. E tendo em conta a necessidade de um aumento da quantidade de dinheiro em circulação para manter as economias a crescer, existe uma necessidade sistémica de, ao mesmo tempo, fazer aumentar as dívidas”. A Vollgeld Initiative quer que apenas o Banco Nacional Suíço possa criar massa monetária e gerir a respetiva quantidade diretamente.

“É sistemicamente impossível reduzir as dívidas sem reduzir o dinheiro eletrónico em circulação. Portanto, nenhuma sociedade conseguirá reduzir o seu endividamento mantendo-se neste sistema monetário de hoje.” -Martin Alder, um dos economistas da Vollgeld Initiative.

Martin Alder afirma que, “porque o dinheiro eletrónico é fundado em dívidas, alguém tem de responsabilizar-se por essas dívidas e pagar juros por elas. Os bancos comerciais, que criam o dinheiro de crédito, estão a acumular esses juros. Logicamente, há um interesse natural por parte dos bancos para que se aumente cada vez mais o volume de crédito e, assim, do dinheiro de crédito”. Esta é apenas parte do problema, segundo o economista. Além disto, “o facto de os bancos conseguirem criar os seus próprios meios de pagamento, isso leva a comportamentos excessivamente otimistas e fomenta o aparecimento debolhas” especulativas.

“O atual sistema de dinheiro de crédito impõe uma necessidade permanente de crescimento exponencial para que consiga pagar os juros — compostos — associados ao dinheiro que está em circulação. Num mundo natural real, não existe crescimento infinito. Mais tarde ou mais cedo, o mecanismo de juros compostos levará ao colapso. Num sistema de Dinheiro Soberano, há um crescimento natural, sintonizado com as necessidades reais. Mesmo uma taxa de crescimento de zero poderia ser sustentável porque não existiriam juros. Este sistema respeitaria as leis na Natureza, que são de um crescimento finito e recursos limitados. Só respeitando as leis naturais básicas é que conseguiremos tornar as economias mais sustentáveis”, diz Martin Alder.

O que o movimento pretende é que “a criação de dinheiro deixe de estar ligada à criação de crédito”. E quer que se abandone esta situação em que alguém que é aforrador torna-se, “necessariamente, credor do banco, forçado a partilhar o risco desse banco”. Martin Alder diz que “os bancos privados devem cumprir o seu papel importante de conceder crédito e receber depósitos, mas não lhes deve ser permitido criar dinheiro por si próprios.

Ou seja, o que a Vollgeld Initiative quer é que os bancos privados aceitem os depósitos de dinheiro real e cobrem pelo serviço de guardar esse dinheiro, o que os aproximaria da imagem de cofres que tinham na banda desenhada do Tio Patinhas. Além disso, os bancos devem, também, conceder crédito mas apenas usando — estritamente — os recursos que os bancos pedem, eles mesmos, emprestado a outros bancos ou ao banco central. Nunca se usariam depósitos para fazer créditos — muito menos multiplicando o valor de reserva fracionária que esses depósitos contêm, quando são transformados em créditos.

“Ideia tonta”, dizem Ricardo Reis e Paulo Pinho

Ricardo Reis, Professor português na Universidade de Columbia, nos EUA, e Paulo Soares Pinho, da Nova – School of Business & Economics, estão de acordo: a proposta que vai a referendo na suíça e o conceito que está na sua base é “uma ideia tonta“.

“A ideia de proibir os bancos de criar dinheiro é tonta. Uma consequência do modelo de democracia direta que os suíços usam é que, por vezes, surgem estas propostas que são muito enganadoras“, diz Ricardo Reis. O académico lembra que “o meu banco cria dinheiro quando me deixa usar o multibanco, ou seja usar um cartão emitido por eles para fazer pagamentos. Ou quando me deixa usar um livro de cheques. Quer a proposta dizer que a partir de agora só posso usar pedaços de papel imprimidos pela Casa de Moeda para fazer pagamentos?”

    “Uma consequência do modelo de democracia direta que os suíços usam é que, por vezes, surgem estas propostas que são muito enganadoras”, diz Ricardo Reis, Professor da Universidade de Columbia.

“Uma consequência do modelo de democracia direta que os suíços usam é que, por vezes, surgem estas propostas que são muito enganadoras”, diz Ricardo Reis, Professor da Universidade de Columbia.

Paulo Pinho vai ainda mais longe nas críticas: “a ideia de que vamos impedir os bancos de criar moeda é uma coisa que não faz sentido algum. É uma proposta um pouco tonta, feita por economistas de gabinete“.

“A moeda que existe é a moeda que é necessária para fazer face às transações da sociedade e fazer face às necessidades de poupança”, diz o Professor da Nova SBE, acusando o raciocínio do Vollgeld de olhar para esta questão apenas pelo lado da oferta e não da procura. No fundo, diz Paulo Pinho, “se os bancos são esterilizados na sua capacidade de criar moeda, a moeda que a procura determina ser a necessária, isso iria criar problemas graves, sobrevalorização da moeda, deflação e acabaria por ter de se encontrar qualquer outra alternativa”.

O Professor da Nova SBE recorda que durante os dois primeiros períodos de intervenção do Fundo Monetário Internacional (FMI) foram colocados obstáculos à criação de moeda por parte dos bancos: “o efeito disso foi uma forte procura de crédito não satisfeita, que justificava um sistema de taxas de juro elevadas, e um sistema de crédito que funcionava de forma menos transparente. Só tinha crédito quem tinha amigos na banca e os primeiros a enganar o sistema eram os próprios bancos”. Para Paulo Pinho, “o problema dos bancos internacionais não está na moeda que criam, está nos riscos que tomam“. “Se se mudasse o sistema mas se continuasse a dar aos bancos a moeda que precisam e eles continuassem a correr riscos, o problema era o mesmo”.

“Os bancos não decidem que moeda é que existe – essa moeda é criada porque há necessidade de criar moeda. Para provar que o fator determinante é a procura e não a oferta basta ver que o BCE e outros bancos centrais estão a promover grandes esforços por aumentar a quantidade de moeda

[e estimular a inflação] e não conseguem — é porque não há procura” -Paulo Pinho, professor da Nova – School of Business & Economics (SBE).

Ricardo Reis diz que “uma proposta diferente, mais credível mas discutível, seria proibir os bancos de emitirem depósitos sem terem por trás dinheiro no cofre correspondente a 100% do valor dos depósitos”. A ideia a que se refere Ricardo Reis chama-se narrow banking (banca estreita) e é uma velha discussão em Economia. “No sistema atual, os bancos emprestam alguns dos seus depósitos e, como parte destes volta depois a ser depositado, cria-se, assim, dinheiro no sentido em que o valor total dos depósitos na economia acaba por ser maior do que ao número de notas emitidas pela Casa da Moeda”, diz o Professor de Columbia.

Ricardo Reis reconhece que, por um lado, isto “causa alguma da fragilidade dos sistemas bancários” — daí o perigo que é uma corrida aos bancos. “Por outro lado, permite a expansão do crédito e permite que muitos de nós ponham à disposição as suas poupanças para projetos de longo prazo na economia ao mesmo tempo que temos a opção de ir ao banco a qualquer hora e usar os nossos fundos para pagar emergências”, explica. “Esta vantagem parece ser mais importante do que o perigo subjacente e é por isso que nenhum sistema financeiro moderno no último século assentou nonarrow banking“.

A revolução pode chegar também em Portugal?

O referendo suíço e a Vollgeld Initiative enquadram-se num movimento internacional chamado International Movement for Monetary Reform, que tem como ponta de lança o britânico Positive Money. Foi com estas entidades que Renato Rodrigues entrou em contacto depois de o documentário Zeitgeist ter, nas palavras do próprio, “batido fundo”. Estabelecido o contacto, “puseram-me em contacto com outras pessoas e temos estado a tentar a juntar algumas forças. Para já, temos estado apenas a traduzir materiais e procurar atingir massa crítica”, diz Renato Rodrigues, natural de Famalicão mas a viver em Lisboa. Entre os apoiantes do movimento Boa Moeda, que se pode contactar através da página no Facebook, estão outros engenheiros — como Renato — e pessoas de várias áreas. Pessoas ligadas à Economia não há tantas — talvez porque “quem vem de fora não vem com certos dogmas na cabeça“, diz o engenheiro do Ambiente.

“O nosso objetivo é que as pessoas, incluindo decisores, saibam como as coisas funcionam”, afirma Renato Rodrigues. O suíço Martin Alder, um dos voluntários que trabalham para a Vollgeld Initiative, coloca as coisas da seguinte forma: “O sistema do Dinheiro Soberano já é aquele que a maioria das pessoas acredita que existe”. Isto porque “reflete a lógica simples que os humanos têm. A maioria das pessoas fica surpreendida quando se apercebe que a realidade é bem diferente. E quando se lhes explica como as coisas acontecem, consideram o mecanismo pouco transparente, estranho e inspirador de desconfiança“.

Se o sistema que existe hoje – da reserva fracionária – fosse submetido a referendo para que fosse introduzido, certamente seria chumbado. – Martin Alder, um dos economistas ligados à Vollgeld Initiative.
Martin Alder diz que “quanto mais tempo demorarmos a instalar um sistema de Dinheiro Soberano, mais provável é que teremos uma nova crise financeira a atingir-nos. E, aí, pode ser que a sensibilização geral para estes problemas já seja suficientemente forte para que as pessoas se atrevam a votar favoravelmente”. Apesar de o governo suíço ter já emitido um relatório em que se diz contra esta opção, Alder continua a confiar numa mudança e numa vitória no referendo. “E o referendo suíço será observado de perto por outros países, seja qual for o resultado. Se muitas pessoas votarem pela mudança, veremos certamente iniciativas semelhantes noutros países“, afirma o voluntário da Vollgeld Initiative.
E se, pelo menos para já, o referendo for chumbado? “Pelo menos teremos ajudado a promover um debate público sobre o sistema que temos — o que é algo que nunca tivemos”. O economista suíço diz que “só isso já chegará para que os cidadãos comuns estejam mais sensibilizados para os problemas fundamentais. Já estamos a constatar isso: muitas pessoas já começam a olhar para o sistema financeiro e bancário de forma diferente, ainda que possam ter alguma hesitação na altura de o abandonar, pelo menos para já. Mas, eventualmente, os custos irão tornar-se demasiado elevados e a mudança acontecerá. As coisas grandes demoram tempo a acontecer. Roma não foi criada num dia“.
Fonte: Observador

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